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É o fim da Intolerância?

Se essa pergunta fosse dirigida ao presente a resposta positiva poderia soar um exagero. Em tempos que brancos e negros ainda se matam por causa da cor de sua pele. Que a opção sexual e religiosa de uma pessoa é motivo para polêmicas, agressões e assassinatos. Ou que mulheres ainda ocupem parte ínfima dos postos políticos e empresariais de tomada de decisão em todo o Ocidente fica difícil falar em fim da intolerância. Um sentimento social que diz de algo que ainda não conseguimos superar: os estereótipos sociais. A maneira como fixamos no outro uma “etiqueta” que define o seu menor ou maior valor, tornando a interação entre as pessoas mais ou menos tolerável em razão dessa imagem social primeira.

No entanto, se colocarmos o tema da intolerância em perspectiva, na longa duração histórica, a resposta pode ser diferente. Caminharia mais para o sim do que para o não em todos os aspectos da vida social, passando desde a moda ao comportamento sexual. Como não considerar que somos mais livres sexualmente? Menos orientados por morais, tradições, etiquetas? Que flexibilizamos o nosso comportamento e o julgamento social? Há uma mudança de mentalidade em curso com a modernidade que não pode ser negada em seu conjunto. A crise do monopólio do sentido de mundo oferecido pelo cristianismo, o questionamento das hierarquias sociais, marcado pela queda da monarquia e da aristocracia e o fim da colonização e da escravidão serão abalos sísmicos na mentalidade ocidental. Emerge nesse lugar a ideia do mérito pessoal, da igualdade e de justiça. Concepções que embalarão todas as grandes revoluções modernas tanto na América, quanto na Europa. Essa nova forma de se pensar o mundo, ainda que não tenha sido uma varinha mágica capaz de eliminar processos históricos consolidados, irá tornar mais frágil qualquer tentativa de justificar hierarquias humanas, sejam elas de gênero, raciais e étnicas.

Tendência apontada originalmente pelo sociólogo alemão Norbert Elias. Em um trecho, muito elucidativo do que se quer dizer aqui, ele afirma: “Como podemos explicar o fato de que durante todo este tempo certos mecanismos de interpenetração, embora não planejados e incontroláveis, se tenham orientado cegamente para uma humanização crescente das relações sociais?!” Que podem ser também traduzidas nas previsões de Jean Condorcet em 1743. São elas: o fim da desigualdade entre as raças e países e a maior igualdade entre os habitantes de um país. Previsões que ganham forma e se universalizam 46 anos depois para todo Ocidente com a Revolução Francesa. Mas, que levariam anos para amadurecer.

Um bom exemplo desse lento processo de mudança é o filme preto e branco e mudo do americano David Griffith (considerado pai do cinema hollywoodiano). Realizado em 1916, a narrativa tem como título: “Intolerância”. Um projeto arriscado em todos os sentidos, a começar pelo investimento de 2 milhões de dólares do próprio diretor _ um dos filmes mais caros já realizados na época. A outra ousadia é a narrativa. Quatro histórias se desenrolam em tempos diferentes, mas com um tema em comum: a intolerância. Na abertura há uma explicação: “Você vai notar que o nosso filme passa de uma para outra das quatro histórias da intolerância, mas o tema ‘intolerância’ é comum a todas, permanece”. O diretor se propõe a pensar e criticar a intolerância durante a História e os conflitos entre nações e religiões em um filme mudo. Mas, que diz ao que veio com os recursos disponíveis: a interpretação teatral dos atores, as imagens e os intertítulos.

A primeira história se passa no tempo presente (1916), tratando dos conflitos entre a zona rural e a crescente industrialização e exploração do trabalho operário tendo a Queridinha, uma menina inocente que vive com o pai em uma zona rural, como protagonista A segunda se passa em Jerusalém, com Maria Madalena e a cena do apedrejamento. A terceira em Paris em 1572 d.C., no tempo de Catarina de Médici, tratando do conflito entre católicos e protestantes. Por fim, a quarta história se passa na Babilônia, abordando a escravidão e o mercado de venda de pessoas.

Assim “como muitos cineastas, Griffith usou a pintura como inspiração visual” , citando diretamente o quadro do pintor britânico Edwin Long de 1875: “O mercado de casamentos babilônico” para compor uma cena da história que se passa na Babilônia. Repetem-se os detalhes decorativos e a presença da mulher apresentada por uma negra em uma espécie de palco, para uma plateia de homens agitados ao fundo. Em sua frente, em uma posição também elevada em uma tribuna, o mercador “vende” a mulher, destacando seus atributos. Em primeiro plano, várias mulheres sentadas e resignadas aguardam a sua vez. A imagem aborda o momento em que a jovem das montanhas é vendida pelo irmão no mercado de casamentos. Essa e outras injustiças afligirão as outras três protagonistas de cada uma das histórias.

Será a star Lilian Gish o elo moral entre as narrativas. Sem fazer parte diretamente de nenhuma das histórias, a cena da atriz coberta por um manto, balançando um berço _ iluminada por um raio de luz _, se interpõe anunciando a transição entre as histórias. O intertítulo elucida: “Ontem, como hoje, o balanço continua trazendo sempre as mesmas paixões humanas e as mesmas alegrias e tristezas”.

Mas, será que a história continua a embalar as mesmas intolerâncias? Muda-se o tempo e persiste o conflito, os estereótipos, as hierarquias? Estaria correta a tese de David Griffith? Acreditamos que, felizmente, não. E é exatamente a análise da história o que nos permite afirmar isso. Há uma tendência a “diminuição das desigualdades na distribuição do poder” . Ou, nas palavras do sociólogo e atual diretor da Escola de Frankfurt, Axel Honneth, “os processos históricos já não aparecem como meros eventos, mas como etapas em um processo de formação conflituosos, conduzindo a uma ampliação progressiva das relações de reconhecimento” . O que nos conduz, segundo suas previsões, a formação de uma “comunidade ética” capaz de oferecer a todos as três formas essências de reconhecimento (amor, direito e estima). Elementos que formam “dispositivos de proteção intersubjetivos que asseguram a liberdade externa e interna”. Lembrando que a liberdade ou a espontaneidade, “não pode referir-se simplesmente a ausência de coerção ou influência externa; ela significa ao mesmo tempo a falta de bloqueios internos, de inibições psíquicas e angústias, mas num sentido positivo essa segunda forma de liberdade deve ser compreendida como uma espécie de confiança dirigida para fora, que oferece ao indivíduo segurança tanto na expressão das carências como na aplicação de suas capacidades”. (...) Nesse sentido “a liberdade da autorrealização depende de pressupostos que não estão à disposição do próprio sujeito, visto que ele só pode adquiri-la com a ajuda de seu parceiro de interação” . Em última análise a liberdade, assim como a intolerância, são essencialmente sociais. Dependem das relações sociais.

Poderíamos dizer, então, que estamos nos tornando mais “tolerantes”? Não diria isso. Persiste na ideia de “tolerância” a distância entre as pessoas, uma espécie de visto que o outro tem de lhe conceder para te aceitar, te tolerar. Por isso, quero propor que o avesso da intolerância seja o humanismo. Nele, sim, há algo profundamente comum que independe da cor, da etnia e do sexo. Mas, não elimina o que temos de mais particular, individual. Nasce exatamente da aceleração do individualismo. Parece contraditório, mas não é. Pois, o individualismo não produziu, como se esperava, o isolamento social (o homo clausus), mas tem ativado uma nova forma de socialização, vínculos, solidariedades e trocas. Um novo estágio de consciência onde “estamos aprendendo a ver nossa imagem, simultaneamente no espelho da autoconsciência e em outro espelho, maior e mais distante” . Fatos que podem indicar uma nova tendência global nas relações humanas; uma nova forma de identificação e integração, que tem curiosamente como motriz a aceleração da individualização. Processos sociais aparentemente contraditórios e que se revelam interligados que denominei em minha tese de doutoramento de “individumanização”. Um neologismo que nos possibilita entender essa engenhosa dinâmica social que gradativamente amplia os processos sociais de individualização na medida em que aumentam as oportunidades de comunicar nossas particularidades _ humanizando-nos.

Isabelle Anchieta
Professora convidada pela USP
Doutora em Sociologia da Imagem pela mesma instituição
Mestre em Comunicação Social pela UFMG e
Jornalista pela PUC

BIBLIOGRAFIA

ELIAS, Norbert. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
______. Introdução a sociologia. Lisboa: Edições 70, 2011
GISH, Lilia _ Intolerância (mudo e P&B). D.W. Griffith, 1916
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. São Paulo: 34, 2003.
______. Reconocimiento y menosprecio: sobre la fundamentación normativa de uma teoría social. Madrid: Katz, 2010.



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